terça-feira, 9 de novembro de 2010

O PRAZER EXTIRPADO

Em nome da honra e da tradição, milhões
de mulheres têm os genitais mutilados
Às vésperas do século XXI, o ritual se repete diariamente: a menina é imobilizada por quatro mulheres, que mantêm suas pernas bem abertas. A mais velha, munida de uma lâmina de barbear, executa a cirurgia, sem anestesia. Com gestos rápidos, corta fora o clitóris, os pequenos e grandes lábios da vagina, e no fim costura tudo, deixando um pequeno orifício para a passagem de urina e sangue da menstruação. A menina faz o possível para não urrar de dor. Agüentar tudo em silêncio é prova de coragem, de que se orgulhará depois. Assunto encerrado, a garota é enfaixada até os joelhos, com as pernas fechadas, e nessa posição ficará, de quarentena, sangrando e penando até cicatrizar — ou morrer. Não se trata de um caso isolado de barbarismo primitivo. A mutilação genital é praticada em 28 países da África e dois do Oriente Médio (veja mapa abaixo), atingindo milhões de mulheres todo ano. O objetivo é exercer a mais total forma de controle do desejo sexual feminino, de forma a garantir esposas dóceis e fiéis.

Alvo de campanhas esporádicas por parte de organizações de mulheres, a mutilação genital voltou a ser lembrada com a publicação, nos Estados Unidos, do livro Do They Hear You When You Cry ("Eles Escutam Quando Você Chora"), escrito a quatro mãos por Fauziya Kassindja, 20 anos, que fugiu há três do Togo para não ser mutilada, e sua advogada americana, Layli Miller Bashir. Fauziya entrou nos Estados Unidos com passaporte falso e amargou quase um ano e meio de cadeia, até se tornar a primeira mulher a obter asilo político no país sob a alegação de que mutilação genital é uma forma de perseguição. Seu caso despertou atenção, levando o Congresso americano a aprovar um antigo projeto de lei banindo a prática nos Estados Unidos, onde, devido ao crescente número de imigrantes do norte da África, em 1996 o Centro para Controle e Prevenção de Doenças calculava que mais de 150.000 meninas corriam o risco de ser mutiladas. "Fico feliz se contribuir para conscientizar gente no mundo inteiro para esse grande drama africano", disse Fauziya a VEJA.

Fauziya Kassindja:
fuga e asilo político
nos Estados Unidos
Foto: Danuta Otfanowski
Segundo a ONU, 110 milhões de mulheres em todo o mundo já foram submetidas ao ritual da mutilação. Pelo mesmo cálculo, cerca de 2 milhões de meninas são mutiladas a cada ano. Em lugares como Somália e Djibuti, estima-se que praticamente todas as mulheres são extirpadas. Alguns países coíbem a prática, medida inócua que não arranha a convicção arraigada entre homens e mulheres de que remover os genitais femininos externos é questão de respeito e honra. No Egito, onde se calcula que pelo menos 55% das mulheres muçulmanas e cristãs coptas ainda sejam submetidas à mutilação, o governo proibiu a operação em hospitais públicos e particulares em 1996. Houve uma chuva de protestos de líderes religiosos mais ortodoxos, sobretudo os fundamentalistas muçulmanos, empenhados em "proteger as mulheres das conseqüências do excessivo desejo sexual". As egípcias, em geral, são submetidas à excisão, ou circuncisão feminina, como é erroneamente chamada a remoção do clitóris e dos pequenos lábios — versão um pouco menos radical da infibulação, em que também os grandes lábios são cortados e costurados.
Presentes e festas — A prática é antiqüíssima, anterior ao cristianismo e ao islamismo. Acredita-se que tenha começado no Egito ou no chamado Chifre da África (extremo leste do continente) há mais de 2.000 anos. A idade em que é feita varia de acordo com a tribo e a região de cada país — vai desde uns poucos meses de vida até as vésperas do casamento, entre 15 e 17 anos. Embora a prática também se verifique em cidades grandes, como o Cairo, é muito mais disseminada no interior. Lá, com freqüência, devido ao peso da tradição, as jovens criadas apenas no ambiente tribal acham a obrigação natural e até desejam ser cortadas, para receber todos os presentes e festas a que têm direito. Condenadas a uma vida sem nenhuma esperança de prazer sexual, só descobrem do que foram vítimas quando têm acesso a informações sobre um mundo onde a mutilação não existe. Nas últimas semanas, com a febre mundial em torno do Viagra, egípcias que ouviram falar do efeito do remédio contra a impotência também para mulheres têm procurado a pílula no mercado negro. Buscam o orgasmo que lhes foi negado para sempre.
"Sangrei durante meses"
Aos 5 anos, vagando com sua tribo nômade pela Somália, a modelo Waris Dirie foi infibulada. "A mulher que me cortou era uma velha cigana. Ela usou uma navalha suja de sangue. Abri minhas pernas, fechei os olhos e bloqueei minha mente. Fiz isso porque minha mãe pediu. A mulher não cortou só o clitóris, cortou tudo e depois me costurou com agulha, bem apertado. Eu só sentia dor. Fiquei deitada no chão, agonizando. Sangrei durante dois ou três meses. O tempo todo, sentia vontade de morrer." Waris sobreviveu e, aos 13 anos, fugiu. Acabou em Londres, como empregada doméstica. Cozinhou e fez faxina até ser descoberta na rua por um fotógrafo e estrear, aos 18 anos, como modelo. Dez anos depois, encheu-se de coragem e contou sua história — a primeira mulher a fazê-lo na primeira pessoa, em um depoimento arrepiante.
Waris levou muito tempo para começar a namorar. "Os homens perguntam se não gosto de sexo", diz. "Não conto a eles o que me aconteceu." Ao contrário da maioria das mulheres mutiladas, que a cada parto têm a costura estraçalhada e depois são costuradas novamente, Waris teve os genitais reabertos em um hospital, por médicos habilitados, mas nenhuma cirurgia pôde reconstituir seu clitóris. Mesmo assim, acha que escapou de destino pior. "Tive muita sorte. Não quero que sintam pena de mim", diz.

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